quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Crítica: O LOBINHO NUNCA MENTE (texto 2)


O lobinho talvez não minta. Mas o cinema, ao contrário, mente. Descaradamente. Mente na medida em que nos impõe (?) uma verdade, ou melhor: a sua (do autor) versão dos fatos a seu bel prazer. Na medida em que direciona o fluxo dos acontecimentos e nos guia, através de outras (infinitas) possibilidades, a uma única saída: a sua vontade. Mente na medida em que nos faz acreditar que o absurdo (!) é verossímil e o improvável, fato.

O curta-metragem desse carioca, que parece ter bebido em águas kafkanianas, não apenas mente. Apela por nossa boa vontade, por nosso crédito, nossa confiança. A autoridade com que o narrador/personagem/autor pretende saber o que se passa na mente de um sujeito prestes a morrer é quase assombrosa. Tem ecos de ficção científica. No futuro, maquininhas serão capazes de ler pensamentos.

Mas afinal, de quem é essa mente/narração que orienta dois olhares (personagem e câmera/autor) a nos exibir o mundo, material/estático, à sua volta? Olhares que contrapõem a imobilidade física de um corpo humano acidentado e das coisas inanimadas ao redor, ao movimento da câmera/olho.

Uma mente narradora direciona olhares que descobrem, e nos revelam um mundo. Uma super-consciência reina num corpo semi-morto enquanto tenta fazer-nos acreditar que a vida parece existir além de si mesma, assim como nas coisas inanimadas.

Essa consciência é a mesma voz que grita desesperadamente por socorro, absolvição, perdão. A voz de um moribundo que, com tempo mais que suficiente para relembrar toda a sua vida (o que diante do fato implacável de sua situação, não faz a menor diferença), oscila entre a possibilidade de sua morte e as preocupações e apegos com o mundo dos vivos.

Mas é para nós, espectadores e juízes, que ele revela seus segredos mais sórdidos. Não importa que não sejamos capazes de salvar o seu corpo físico. Importa somente que salvemos sua consciência/alma. Que a possamos perdoar, simpatizarmo-nos com ela. Afinal, confessar o crime sempre diminui a pena/indiferença.

Piscadas em Código Morse logo ao início, pedem socorro enquanto parecem marcar o tempo. Três dias, nove minutos e quarenta segundos, um segundo. A efemeridade de uma maçã que apodrece é a mesma de uma vida que se esvai. Aliás, a pergunta é inquietante: será que a maçã mordida sabe que está apodrecendo? Para o tempo, essa consciência não importa. Para o cinema, sim.

Esse curta parece afirmar que o cinema ultrapassa a vida e faz da consciência uma ponte para vencer a morte, a escuridão. O cinema continuará ecoando para além de uma vida que se extingue, na medida em que alguém seja capaz de tomar partido, absolvendo-o ou não, de sua causa/julgamento.

Meire Rose Cruz

(texto produzido na oficina “O curta-metragem brasileiro: história e crítica”)

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